março 09, 2007

300

Percorre a rua molhada, já sem chuva. Cruza a mala, aperta as mãos nos bolsos e acelera o passo. Apesar da hora, apesar do frio na barriga, pesando muito o cansaço, já conhece as manhas da rua. Sabe que dali a um quarteirão terá que fechar mais o casaco, para que se lhe não vejam as pernas (evitando os previsiveis piropos dos miúdos, que nos seus 16 anos têm pressa de crescer)...mais a diante, perto da sua paragem habitual, sabe que há reunião dos sem abrigo, talvez lá esteja o Quim, que a vê há tantos anos percorrendo a mesma rua que já quase o tem como amigo. Quase.

Não sabe quantos homens já lhe passaram pelo corpo. Talvez, se parasse para pensar, talvez conseguisse ter uma ideia aproximada....mas para quê? Para se sentir ainda pior nas roupas de grife que usa? O vermelho dos lábios borrado, o lápis nos olhos já meio apagado, o blush imperceptível....até o brilho da sombra nos olhos se foi. Porque o dos olhos, perdeu-o há muito tempo. Apenas as unhas- vermelhas- se mantêm intactas. Puxa de mais um cigarro, matando a cada baforada, um pouco da solidão que a acompanha. E a si mesma. Sem pressa. Sem culpa. Nem remorso.

É com o cabelo em desalinho que espera pelo autocarro. O primeiro da manhã. A hora agora é de dormir. Para amanhã voltar, vestir, despir, voltar a vestir, apertar as mãos nos bolsos do casaco, encolher os ombros e baixar os olhos (para evitar o frio da madrugada que se entranha) e ao passar na 31 voltar a tentar fechar um pouco mais o casaco, ondulante perante a pressa dos seus passos, o desconforto em ser notada por aquelas crianças, a mágoa de olharem apenas para as suas pernas e a vergonha de uma pintura agora desfeita, agora borrada, já sem sentido.

Até ao dia em que ganhar coragem para andar mais um quarteirão. E se abeirar da ponte.

E provar a todos que os cigarros a matavam devagar. Demais.